segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Dor

Quando desencarnou, a 72º vida da alma de Ishmail chegou ao paraíso querendo falar ao deus Omã, pai das reencarnações. A consulta lhe foi cedida sobre a condição de uma pergunta e um desejo.
"Faça sua pergunta, Ishmail, e eu lhe darei a resposta!"
- Senhor, minha última vida foi repleta de guerra e sofrimento. Vi minha mulher ser morta pelo inimigo e meus filhos escravizados. Fui ferido inúmeras vezes em batalha. Por que devo sofrer tanto?
"A dor é inevitável e imensurável, Ishmail. A dor que sentiu em sua vida não foi maior do que a dor que qualquer outra alma sentiu em toda eternidade."

Irritado com a resposta de Omã e revoltado com a idéia de que sua dor não era maior, Ishmail fez o seu desejo.
- Desejo que em minha próxima encarnação não haja dor maior do que a de um alfinete no dedo!
"Que assim seja!"

A 73º reencarnação, Taruf, nasceu de um mercador rico e generoso. Em sua primeira noite de vida, recebeu o pai em seu berço, que segurava uma agulha dourada, tirando-lhe uma gota de sangue do polegar direito.
Taruf cresceu recebendo seu pai toda semana, lhe tirando uma gota de sangue com a agulha dourada, sem nunca conseguir lhe dar explicação do porque fazia aquilo. Nunca se feriu de outra forma, sua vida foi cheia de alegrias, e suas frustrações não traziam angústia ou desânimo.

Taruf não era feliz. Era incapaz de compreender sua dor, qual o motivo dela, que significado havia naquilo. Não havia um momento de sossego em sua vida em que não lhe trouxesse ansiedade sobre a próxima visita de seu pai com a agulha, ou um questionamento que não culminasse no ponto inexplicável deste ritual ao qual não conseguia impedir o pai ou mesmo tentar fugir. Sentia-se compelido a estar presente naquele momento, como se a qualquer instante aquilo pudesse cessar ou ser explicado.
Quando seu pai morreu, não sentiu tristeza ou melancolia de qualquer forma, mas um alívio incontrolável sobre o fim do ritual com a agulha. Além das riquezas e propriedades, havia entre os bens de herança o alfinete dourado.
O objeto lhe dava arrepios, mas Taruf não conseguiu se desfazer dele. Uma semana depois, sentindo uma angústia sem origem, Taruf irresistivemente agarrou a agulha e furou o próprio dedo, como seu pai fazia. Sentiu toda a infelicidade que aquilo lhe trazia voltar a tona, mas com um senso de consolo de que aquilo estaria ali pelo resto de sua vida.

Quando morreu, foi chamado no paraíso por Omã.
"Me fale sobre sua vida, Taruf"
- Senhor, sinto-me grato pela riqueza e pelas alegrias, mas me diga porque sofri tanto com a agulha dourada?
"A ferida de uma simples agulha lhe trouxe tanta dor assim?"
Tarouf sentiu-se fraco por um instante, mas respondeu.
- Não foi a dor da agulha, mas não poder compreender porque ela estava ali.
"Essa é a dor de todos os mortais, Taruf"

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